SOPHIE CALLE E OS LIVROS EDITADOS pela ACTES-SUD

No contexto da obra de Sophie Calle o uso de livros de pequeno formato serve para promover uma narrativa pessoal e ficcional. Por vezes, estes livros são também um misto de catálogo e arquivo de performances ou outras experiências. Regra geral, um texto impresso numa escala reduzida obriga o leitor a aproximar o livro do rosto e corpo, criando assim uma relação física mais directa que facilita uma potencial relação afectiva com esse objecto e o seu conteúdo. Seja pela escala reduzida, pelo seu conteúdo ou apenas por ser "portátil", um livro de pequenas dimensões pode ser associado a um objecto pessoal como "agenda" ou "diário" e, por isso, é mais facilmente conotado como sendo repositório de informação pessoal ou segredos.

Embora Sophie Calle tenha colaborado com a Editora Actes Sud para executar todos os seus livros de artista, cada um é encadernado e elaborado segundo a natureza do projecto. Ou seja, a cada volume isolado ou cada série de edições (comercializadas em caixas), corresponde um formato específico, um papel com determinada gramagem e textura, uma lombada de cor distintiva, entre tantas outras características que simultaneamente os distingue e nos permite reconhecer a colecção à qual pertencem.

Para cada série de trabalhos Calle tece um intricado sistema de colaborações com artistas e indivíduos das mais diversas áreas de conhecimento. Recorrentemente, as obras têm como ponto de partida um episódio aparentemente banal da (sua) vida quotidiana sem, todavia, nunca sabemos exactamente o que pensa ou sente o indivíduo Sophie Calle.

Douleur exquise é um exemplo da estratégia de simulação de uma partilha íntima, da implicação de outros intervenientes e até, de um apelo à compaixão do leitor-público: trata-se de uma esplêndida edição com capa brochada a tecido e estampagem cega, com lombada vermelho-brilhante. O título, que Calle esclarece significar dor intensa e localizada 1 é, no entanto, ambíguo, podendo ser interpretado e traduzido por: dor insólita (estranha) ou dor rara (no sentido de "requintada"). Neste volume, dividido em duas partes distintas, Sophie Calle narra uma viajem de 92 dias feita ao Japão, no âmbito de uma bolsa de estudos, durante a qual vive uma ruptura amorosa com um homem que denomina M.

A primeira parte do livro é intitulada avant la douleur, documenta o percurso físico e geográfico, por via de fotografias e pequenos apontamentos de texto, sobre os quais é carimbada a vermelho a contagem decrescente para o fim da viagem. As fotografias são impressas sobre fundo branco e as páginas têm um rebordo vermelho. Notamos ainda que, nesta primeira parte, apenas as páginas pares são numeradas. Estes detalhes, aparentemente anódinos, ganham significado crescente ao longo do desenrolar da estória.

A segunda parte do livro, intitulada aprés la douleur, corresponde ao retorno a Paris e documenta um conjunto de entrevistas de Sophie Calle, que narra o seu desgosto amoroso, e um conjunto de 37 respostas à questão Em que ocasião sofreu mais2?

Este diálogo é graficamente apresentado pelo uso sistemático de uma regra muito simples:
- A estória narrada por S. Calle é impressa à esquerda. O texto está impresso a branco sobre um fundo negro mas vai-se gradualmente desvanecendo ao longo das páginas, numa subtil gradação de cinzentos até ao se tornar ilegível contra a página negra. Cada folha par (à esquerda) é encabeçada por uma mesma fotografia que se repete continuamente até à última página e que consiste na imagem de um fragmento de um leito sob qual jaz um telefone vermelho. A resposta do seu interlocutor, personagem anónimo e inidentificável, é impressa à direita (nas páginas impares que, nesta segunda parte do livro, estão numeradas). O texto impresso sobre um fundo branco é encabeçado por uma imagem implicitamente relacionada com o episódio descrito.

A partilha de uma paixão3 e confronto dramático entre S. Calle e os seus interlocutores leva o leitor a identificar-se com uma ou outra situação descrita. De facto, o processo de feitura do livro e a sua leitura têm uma natureza terapêutica; como a própria Sophie Calle afirma: Cet échange cesserait quand j'aurais épuisé ma propre histoire à force de la raconter, ou bien relativisé ma peine face à celle des autres.4 Consequentemente, também o leitor é envolvido emocionalmente nesta rede de experiências humanas, relacionadas com o seu próprio quinhão de experiências negativas amorosas e passionais.

O pequeno formato alongado de Douleur exquise e o conjunto de livros publicados em colaboração entre Sophie Calle e a editora Actes Sud parecem implicar emocionalmente o espectador nesta troca (mútua) de confidências. Os inúmeros detalhes de organização e composição gráfica e ainda os pormenores técnicos ao nível da construção do livro e respectiva encadernação evidenciam a singularidade deste projecto de livros de artista.

Sophie Calle é, acima de tudo, uma performer: é o agente principal de uma obra que constrói, narra e expõe, sem nunca revelar o grau de veracidade e diferenciação que existe entre vida e obra.

Isabel Baraona, 2010


1 Douleur vive et nettement localisée. CALLE, Sophie – Douleur exquise. Paris, Actes sud, 2003. pág. 09
2 Quand avez-vous le plus souffert ?. CALLE, Sophie – Douleur exquise. Paris, Actes sud, 2003. pág. 203
3 paixão enquanto sofrimento (pathos)
4 Quand avez-vous le plus souffert ?. CALLE, Sophie – Douleur exquise. Paris, Actes sud, 2003. pág. 203/204