ediÇÃo imagem contra-cultura manifesto social arte design

(...)A dificuldade em definir o termo "livro de artista" e em designar tipologias precisas para esses objectos gráficos tem sido debatida de forma recorrente desde os anos 60 do século XX1. No entanto, Anne Moeglin-Delcroix aponta uma característica específica que distingue o livro de artista de todos os outros livros, como veículo de expressão plástica, que é ser um livro inteiramente concebido como um objecto de arte2. Mas se o que "faz" um livro de artista é pensar e elaborar o objecto livro na sua totalidade (tanto material como diversos níveis de leitura semiótica) importa (sempre) frisar que o termo editar é comummente e erroneamente usado como sinónimo de publicar. Se insisto nesta distinção, que foi já aflorada em artigos anteriores, é porque tanto a elaboração e materialização como a posterior publicação e distribuição3 têm implicações semânticas e conceptuais próprias. A estratégia de publicação e distribuição de um livro de artista não é anódina, pelo contrario é, por si só, um aspecto muito interessante e complexo que tem sido matéria de estudo por implicar uma tomada de posição ética e política tanto por parte do autor e/ou do editor (quando não se trata da mesma pessoa).

(...) No contexto de produção do artista, o objecto impresso (seja um livro ou não) pode ser o espaço de experimentação ou apenas mais outro meio de experimentação; pode servir de suporte para uma narrativa autobiográfica ficcional ou ser repositório documental de uma obra de carácter performativo; ser suporte para um comentário social e ser um objecto democrático e acessível a um público mais alargado; pode também funcionar em diálogo com outras disciplinas artísticas ou outros mediums usados (Peter Downsbrough)4, entre tantas outras potencialidades inerentes a este tipo de suporte. A listagem esboçada serve apenas o propósito de demonstrar que, no contexto artístico, o livro é pensado como qualquer outro objecto que faça parte da produção idiossincrática e singular do artista.

Em Portugal, a aparente marginalidade da auto-edição e do livro de artista tem sido benéfica por estimular redes de colaborações, amizades e afectos entre autores e também coleccionadores. Muito poucos artistas desenvolveram e desenvolvam projectos de longo fôlego neste campo. Arrisco destacar os nomes Lourdes de Castro e de Daniel Blaufuks, mais recentemente Carla Filipe e Catarina Leitão, que no seio da especificidade dos seus projectos artísticos têm elaborado livros de artista curiosos e de grande qualidade.

Os livros de Catarina Leitão parecem estar sujeitos à convenção: tem uma capa e um miolo. Contudo, são um dos meios usados para pensar a relação entre a bidimensionalidade da página e, acrescento, do desenho, em intrínseca consonância com a tridimensionalidade do próprio objecto livro que, no caso desta artista, ocupa um espaço que é o da escultura. Será Invasive Species5 um livre de peintre, único e pintado à mão que, ao ser aberto e manipulado torna-se instalação? Ou será uma instalação que pode ser acondicionada e transportada como um precioso livro?

(...) Concluo e repito, o panorama da edição alternativa, experimental e independente em Portugal é interessante e diversificado. Este é um facto fácil de constatar nos eventos espalhados por todo o país e calendarizados com regularidade, como por exemplo: pela extinta Feira Laica e recentemente a Feria Morta, a Feira de publicação independente (Porto), Books make friends (Matosinhos) onde um público mais alagado pode conhecer e adquirir (bons) projectos editoriais que circulam já entre amigos e fazedores de livros. Nos últimos anos têm sido programadas excelentes conferências sobre estes assuntos, como a participação de Johanna Drucker, ao lado de Pedro V. Moura e Manuel Portela, na biblioteca da Fundação Serralves ou, o ciclo de palestras de Mário Moura na Culturgeste em Lisboa. A minha experiência pessoal, como uma das organizadoras de "o que um livro pode", um ciclo de conferências organizado em Dezembro de 2011 e de 2012 pela Oficina do Cego e associação Ghost no espaço do Atelier REAL em Lisboa, comprova que há público interessado em aprender e debater, esbatendo fronteiras entre áreas de conhecimento, nomeadamente entre arte e design.

Mesmo que ainda haja alguns equívocos e que as colecções institucionais sejam falhas em autores contemporâneos portugueses, começa a haver massa crítica tal como algum reconhecimento, inclusive internacional, por parte de quem há muito escreve sobre o assunto, basta consultar o índice do Journal of Artists Books #32 que saiu no Outono de 2012 e é dedicado à edição portuguesa.

Isabel Baraona

http://pangrama.org

 

1 Os ensaios de Anne Moeglin-Delcroix, Esthétique du livre d'artiste (Paris, Ed. Jean Michel Place/Bibliothèque Nationale de France, 1997) e de Johanna Drucker, The century of artists' books (N.Y. Granary books, 2004), são duas referências incontornáveis.

2 « le livre n'a pas un sens il est son sens ». In, Anne Moeglin-Delcroix - Livres d'artistes. Nouvelles de l'estampe, nº122. Paris, Avril-Juin 1992

3 Jerome Duperyat,  editor da revista http://www.revue-2-0-1.net/, tem  pensado e escrito sobre esse aspecto específico. Alguns textos podem ser consultados em http://www.jrmdprt.net/ e também http://www.lejournaldesarts.fr/jda/archives/docs_article/80949/exposerpublier.php

4 como no caso do escultor Peter Downsbrough que pensa e usa o espaço da página do livro como um espaço físico de exposição; existe uma entrevista disponível no youtube: Peter Downsbrough and The Books

5 como podemos ver nas imagens que documentam Invasive Species, em http://www.catarinaleitao.net/2010_IS/book.html.