transmutaÇÃo e sobrevivÊncia (excerto do texto original)

Havia noutros tempos um príncipe chamado Pedro que tinha um irmão de leite chamado Pedrito. Viviam os dois como se fossem verdadeiros irmãos e tinham jurado valerem sempre um ao outro nos trabalhos que a sorte lhes destinasse. (…) mas qual não foi o seu espanto ao verem que ao passo que Pedrito ia contando o que ouvira pelo caminho se ia transformando em estátua de pedra. Foi grande a dor de Pedro, (…). As fadas disseram a Pedro que só com sangue dele derramado sobre Pedrito o podia tornar homem. Pedro cortou um dedo para salvar o seu irmão, mas ao mesmo tempo que Pedrito se tornava em homem ia-se Pedro transformando em estátua.
in
, Contos Populares. 1

(...)

Um vasto conjunto de lendas, fábulas, contos infantis, mitos e outras histórias eruditas ou populares, relatam momentos de transmutação necessários à preservação ou até sobrevivência do personagem. Essa transmutação pode ser física, por exemplo: o personagem assume a forma de um bicho; ou pode ser de cariz psíquico e emocional, neste caso, um personagem muito frágil ou jovem pode mesmo matar um oponente ou um animal poderoso, como um dragão.

Nos contos infantis, regra geral, um personagem que é ainda uma criança para se tornar autónomo e adulto, deve ultrapassar um obstáculo aparentemente intransponível como atravessar uma floresta escura ou, realizar uma tarefa complexa que exige muito tempo e paciência, como fiar uma grande quantidade de linho, fazer a triagem de vários quilos de grãos ou limpar a casa de Baba Yaga 2. Tanto nos contos infantis como em alguns mitos, os heróis contam com a ajuda de sortilégios mágicos ou beneficiam da ajuda de outros personagens com poderes sobrenaturais.
No entanto, muitos contos ensinam também que a aquisição de um novo corpo, de conhecimento e a entrada na vida adulta exige uma maturação lenta:

"Pourquoi ne me poses-tu pas d'autres questions ?" dit Baba Yaga." C'est assez pour moi " répondit Wassilissa, " vous avez dit vous-même, grand-mère, que trop de savoir rend vieux 3 ».

(…)

Em Psicanálise dos contos de fadas 4 Bruno Bettelheim procura estabelecer diferenças e semelhanças entre os contos infantis e mitos, associando-os a optimismo versus pessimismo. Entre outros aspectos, enfatiza a importância de elaborar texto e sentido em torno dos difíceis momentos de crescimento e transformação – que se sucedem indefinidamente 5. Ao permitir decifrar, a partir de metáforas os mecanismos de desenvolvimento do mundo interior e o funcionamento do mundo exterior, o mito e as histórias infantis apaziguam angústias e são veículo de reconforto, nomeadamente por via da relação empática estabelecida com o personagem principal. Estas não são apenas características da narrativa oral e escrita, estando também presente nas artes visuais e outras.
Contar (narrando ou desenhando), ouvir ou ler (por imagem ou texto) uma história com esta carga simbólica 6 e emocional é transpor ou deixar esmaecer o limite entre realidade e ficção, entre tempo histórico e tempo presente.

(…)

Assim, estes breves instantes de transformação e dissolução, podem ser tão intensamente vividos por aquele que narra, como pelo que escuta e/ou vê. Entre o narrador ou o artista e o público potencia-se um fenómeno imprevisível - a possibilidade latente de identificação intelectual e afectiva entre indivíduos, como por exemplo entre o narrador e público, do espectador para com o personagem/herói da história.
Os momentos de transformação ou metamorfose podem manifestar-se fisicamente ou materialmente, por via da alteração do comportamento mas também, e sobretudo simbólica e espiritualmente. Como vimos anteriormente, apesar dos dois fenómenos estarem intimamente correlacionados com rituais de passagem, não se resumem apenas ao par - criança/adolescente ou adolescente/adulto. Existe uma gama mais complexa de sentimentos e acções inerentes a qualquer mudança: - aprender e ganhar autonomia (física, emocional, económica); sair de casa (para a floresta, para a escola, para viver noutra casa); encontro com o outro (com o amigo, o corpo do amante), o estrangeiro (outra língua, outra cultura); o nascimento de um filho, a doença ou morte de um ente mais velho; entre todas as experiências que nos modificam engendram a nossa humanidade, sejam elas vividas solitariamente ou sejam partilhadas em comunidade. Todas as experiências podem potencialmente modificar-nos, consolidando ou debelando o que pensamos ser a nossa identidade primeira. O artista Sul-africano William Kentridge afirma: certainly for an artist, it's the physical activity of making the work that both clarifies the idea of the work but also, in the end, constitutes who the artist is or who he is (…) and in the end construct the person who has been drawing them. 7

Neste sentido, estamos permanentemente em devir, estamos continuamente a tecer uma identidade enquanto indivíduos e comunidade e, quanto mais vivemos mais nos afastamos de um qualquer desígnio de "pureza". Amin Malouf usa a seguinte metáfora para explicar com pungente clareza quão difícil, senão impossível, é elaborar um discurso sobre a complexa construção da nossa identidade: A identidade de uma pessoa não é uma justaposição de pertenças autónomas, não é um pachwork, é um desenho sobre uma pele esticada; se tocar numa das pertenças, é toda a pessoa que vibra 8. O instinto de sobrevivência e a capacidade natural do homem em adaptar-se permanentemente ao ambiente em que vive e a passagem do tempo, fazem com que o que nomeamos conscientemente "eu" esteja permanentemente em transformação. Essas alterações são sentidas, vividas e marcadas sobre a pele: "mapeiam-se" na aparência exterior - enrugamos quando envelhecemos, o atrito com o mundo provoca (-nos) cicatrizes. Mas também de modo invisível a um nível interior, intelectual e afectivamente cada dia em que aprendemos "coisas" e amadurecemos. Como seres sinestésicos que somos "transformamo-nos" ao engendrar, produzir, materializar "qualquer coisa" activamente; mas também, ao observar ou analisar passivamente um qualquer objecto. Mesmo quando à partida não parecemos ser um "filho de pais de diferentes países ou de condições diversas" somos, inevitavelmente, o fruto singular da nossa própria resiliência às inúmeras condições diversas e adversas com que nos confrontamos dia-a-dia.

Isabel Baraona, 2012

Revista Intervalo #5, 2012

1 SERPA GONÇALVES, Maria José – Contos Populares. Colecção Educativa - série o ; nº 4. Lisboa, Ministério da Educação Nacional / Direcção Geral da Educação Permanente, 1974 (3ª Edição)

2 Baba Yaga é uma bruxa associada à tradição oral dos países de leste;  por vezes é maléfica, por vezes benéfica.

3 VON FRANZ, Mari-Louise – La femme dans les contes de fées. Paris, Albin Michel, 1993. Pág. 228

4 BETTELHEIM, Bruno – Psicanálise dos contos de fadas. Lisboa, Bertrand Editora, 1998

5 Um indivíduo são seria um ser estruturado mas em devir, capaz de integrar a mudança: o que de bom e mau se passa à sua volta.

6 Nos contos de fadas e nos sonhos a deformação física significa frequentemente deficiente desenvolvimento psicológico. Nestas histórias, a parte superior do corpo, incluindo a cabeça, é geralmente parecida com um animal, enquanto a parte inferior é a de um ser humano normal. Isto indica que as coisas estão mal quanto à cabeça –isto é, o espírito – da criança e não quanto ao corpo. As histórias dizem também que os danos causados à criança por sentimentos negativos podem ser corrigidos (…) BETTELHEIM, Bruno – Psicanálise dos contos de fadas. Lisboa, Bertrand Editora, 1998 Página 93

7 transcrição parcial de uma entrevista retirada do vídeo Point of view, an anthology of the moving image; entrevista com Dan Cameron, gravada em 2003

8 MAALOUF, Amin – As identidades assassinas. Lisboa, Difel, 2002. Pág. 36